Barcelos
D. José Cordeiro: “A morte da pequena Gabriela é a mais cruel de todas as provações”
Na sequência do trágico falecimento de Gabriela Moreira de 8 anos, no último domingo, em Barcelos, D. José Cordeiro divulgou hoje uma homilia sobre este impensável momento com uma reflexão profunda sobre o sentido da vida e as alegrias e tristezas que o pintam, independentemente dos nossos desejos. Tais palavras ganham um peso acrescentado, neste dia em que realiza o funeral da menina
“Eduardo Galeano, em O Livro dos Abraços, conta a história de Diego que, todos os dias, com insistência, pedia aos pais para ver pela primeira vez o mar. Um dia, cumprindo o pedido do filho, os pais levaram-no a ver o mar. Depois de muito caminharem, quando chegaram à praia, o mar estava diante dos seus olhos. O filho, colado à mãe e ao pai, pediu-lhes baixinho: pai, mãe, ajudem-me a ver!
- UMA FERIDA POR CICATRIZAR
A vida é insondável. Umas vezes, é uma maravilha que reconhecemos não merecer; outras é um inferno que nos ameaça e destrói. Hoje, congrega-nos o absurdo! Esta morte abre um abismo que engole o passado, assola o presente e devora o futuro. As lágrimas não se conseguem travar diante desta partida sem aviso. Choramos por cada memória, por cada abraço, por cada saudade. É uma ferida por cicatrizar. É um vazio que nunca se preenche. É uma ausência que continuará a doer-nos até ao fim!
A morte da pequena lobita Gabriela é a mais cruel de todas as provações. De um momento para o outro, a vida desabou, e arruinaram-se os sonhos e as expectativas, os projetos e as esperanças, os desejos e a vontade de os concretizar. Num dia, celebrávamos a tua promessa de lobita, acompanhávamos as caçadas da tua alcateia e o significado que ias dando ao Livro da Selva; no outro, assistimos à tua trágica partida.
Na verdade, a Gabriela partiu, mas não estou certo de que tenha morrido, porque o que nos deixou é vida, sede e fome de fazer. A Gabriela é um convite à celebração da vida, mesmo quando a vida é brutal e nos esmaga o entendimento; ela ficará como um ícone da juventude, da beleza, que nos faz, apesar de todas as monstruosidades, querer arriscar pelo caminho do bem. - UMA DOR SEM NOME
Não conseguimos imaginar a dor de quem perde um filho. É o impossível a acontecer. É sempre impossível quando um pai ou uma mãe perdem um filho. Não há palavras para descrever a morte de um filho por nos ser impossível imaginá-las. Um filho pode perder os seus pais, e sabemos que existe uma palavra para o definir: órfão.Mas quando uma mãe ou um pai veem o seu filho partir, não há palavras para o expressar por nada existir para lá do inominável abismo e do horror absoluto. Como imaginar a dor daqueles que dizem, dia após dia, em refrão: está frio, leva o casaco; manda mensagem quando chegares; está mau tempo, toma cuidado; depois diz-me como correu; estás bem? eu avisei-te; o almoço está pronto; deixa-me ver isso; não quero que venhas tarde; não dormi enquanto não chegaste; parabéns; adoro-te.
Hoje, abraçamos a vossa dor. Talvez esta dor – o revés de um parto – seja a que mais questiona a nossa fé. Se Deus é Amor, então porque é que Ele não a salvou? Se Jesus é realmente o Salvador do mundo, então onde é que Ele está neste momento tão angustiante? E o que diz Deus? Que partido toma? De que lado está? Porque é que não Se pronuncia?
Quem sofre pela perda tem direito a estes gritos. Não são blasfémias. Aliás, podem ser autênticas orações. Deus, em Jesus Cristo, vem ao nosso encontro, sente as nossas dores e acompanha-nos amorosamente no nosso sofrimento. A Gabriela, a quem muito amamos, será transfigurada pelo amor que Deus é. Todos os dias devíamos rezar com ela, convocá-la para a nossa vida para não nos perdermos dela, pois ela nunca se perderá de nós. Como não recordar intensamente o seu riso, os seus gestos, a sua ternura, o seu rosto, as suas palavras e desejos? Deus é Deus dos vivos, não fez a morte (Sb 1, 13-15), e apenas quer que à morte não lhe seja dada a última palavra.
Se Deus existe, e nós acreditamos que sim, a Gabriela está viva, porque aqueles que amamos são para sempre, e não há ausência que apague o Amor. Mais forte que a morte é o Amor. Se Deus existe, e nós acreditamos que sim, a Gabriela, de lenço amarelo ao peito, está viva nas alegrias que derramou em tantas vidas e na memória dos abraços que ninguém pode arrancar de nós. Se Ele existe, e nós acreditamos que sim, a Gabriela está viva nas imagens que dela guardamos no coração e no sorriso com que acolhemos tantas lembranças suas. Está viva porque, quando nós amamos, nós escolhemos que esse alguém fique connosco para sempre. - AJUDA-NOS A VER-TE
Hoje, pequena Gabriela, somos nós a pedir-te: ajuda-nos a ver! Gabriela, ajuda-nos a ver, através do horror da tua partida, os motivos para viver e a urgência de fazer com que a tua vida não morra. Ajuda-nos a ver a luz, e não a escuridão. Ajuda-nos a acreditar que a vida não se esgota neste caminho. Ajuda-nos a ver a esperança e a encontrar um sentido para a nossa própria história. Ajuda-nos a ver a ternura dos abraços, o afeto, a imaginação, o colo materno e paterno da confiança e a arte de recomeçar, tão própria das crianças. Ajuda-nos a ver aquilo que traz cada novo dia, quando ainda se derramam lágrimas pela tua partida. Ajuda-nos, pequena Gabriela, através do teu exemplo, a deixar o mundo um pouco melhor do que ele é, enquanto aqui estamos.
A todos os que vivem esta dor, abraço-vos e agradeço-vos por serdes tanto; mesmo tendo perdido tudo, é tanto.”
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